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O Verdadeiro Palhaço e o Falso Palhaço


Toda vez que um circo se instalava em minha pequena cidade o meu coração ficava em alvoroço. Naquele tempo não existia carros com alto-falantes para anunciar eventos pelas ruas. As apresentações das peças noturnas do circo eram anunciadas por um palhaço de longas pernas de paus, que elevava o seu corpo a altura dos telhados das casas. A gurizada que acompanhava o palhaço pelas principais ruas da cidade, respondendo em coro as suas perguntas carregadas de humor, tinham direito a um ingresso para assistir as peripécias dos meliantes circenses durante uma noite escolhida por eles durante a temporada do circo, que geralmente não ultrapassava os oito dias.

Tinha lá os meus dez ou doze anos de idade, quando tive a oportunidade de ouvir pela primeira vez a palavra “espetáculo”. Lembro-me bem dos gritos esfuziantes do palhaço.

“Hoje tem espetáculo?” ─ bradava ele numa espécie de megafone feito de lata.

“Tem sim senhor!” – respondíamos em uníssono.

“Vai haver marmelada? ─ emendava o palhaço, dando passadas longas com suas pernas de paus cobertas por um pijamão intensamente colorido.

“Vai sim senhor! ─ gritávamos, todos em uma só voz.

Tínhamos que decorar as respostas do jeito que o palhaço nos ensinara, sem gaguejar ou sair do tom, numa cantilena repetitiva. As demais estrofes da opereta eu não me lembro agora.

Mas a palavra “espetáculo” ficou gravada indelevelmente em minha mente.

Não é que hoje, aos meus quarenta e sete anos de idade, toda vez que vejo os telepastores executando suas diabruras e retetês nos supostos programas evangélicos pela Televisão, me vem à lembrança os meus tempos de menino em que corria aplaudindo e repetindo os refrões previamente decorados, seguindo o palhaço de pernas de paus, para ganhar um ingresso de uma noite no circo de lona esburacada.

Acho, que devido os tele-evangelistas serem tão engraçados em suas piruetas e mungangas, e que apesar de não se pintarem nem se vestirem com roupas extravagantemente coloridas, evocam lá do meu inconsciente um outro espetáculo ─ o da figura do palhaço de pernas de pau, que alegremente fazia a propaganda do seu circo nas ruas íngremes de minha cidade.

Assistindo aos programas dos supostos homens de deus, na TV, eu me sinto como se estivesse no meio da plateia ensandecida e histérica gritando bordões e dando palmas para Jesus.

Não seria esse o motivo pelo qual Freud denominou a religião de uma ilusão infantil, ou infantilismo?

O que me atrai, ou o que me faz ligar a Televisão para assistir os espetáculos “Show da Fé”, o “Programa da Vitória do Silas” entre outras peças ridículas do evangeliquês universal, senão, o desejo inconsciente que em mim ficou gravado do tempo que corria embevecido atrás do palhaço de gigantes pernas de paus?

Naquele tempo o que me atraia muito era ver o palhaço verdadeiro caminhar com raro equilíbrio em cimas das pernas de paus gigantes, sem titubear. Talvez, o que me faz deter por alguns momentos diante das figuras do telepastores nos seus risíveis programas seja o prazer de reviver ou trazer à tona aqueles tempos que não voltam mais.

Mas cadê as pernas de pau que me atraiam tanto, nos palhaços de outrora?

Ah! já sei: elas na certa sofreram um deslocamento, ou transmutação (processo de transferência de natureza psicológica). O rosto do apresentador “evangélico” que me prende o olhar, está com certeza simbolizando as pernas de paus do palhaço do tempo de minha meninice. Ah! Agora, sinto que tudo se encaixa direitinho. Entendi perfeitamente a razão pela qual sempre saio revoltado para o meu quarto de dormir, após os programas gospel, ocasião em que fico repetindo para mim mesmo: “Esses bandidos são uns são uns caras de pau’”.

Quando acaba a pantomima televisiva, dirijo-me ao leito, sem deixar de sentir reverberar em mim o vozerio do palhaço gospel manipulando sua platéia com gastos bordões:

─ Repitam comigo agora!

─ Deuuuuuuuus!

─ Deuuuuuus ─ repete a platéia de olhos fechados e punhos erguidos

─ Vai me dar a Vitória Financeira. É hooooooooje! – berra o ator pregador

─ Vai me dar a Vitória Finaceeeeeeiraaa – repete sem pensar a multidão entorpecida.

─ Mais altoooooooooo!! Parece que aqui só tem crente frouxo – dispara o sofista pregador.

São em momentos como esse que, tomado de intensa indignação, acabo por desligar a televisão, abruptamente.

Acho que Freud explica as razões de minha revolta: Talvez, a parte divina do meu inconsciente faz com que eu não suporte ver homens que se dizem representantes de Deus, desvirtuar na maior “Cara de Pau” o palhaço profissional e honesto do meu tempo de menino. A minha revolta está aí explicada, inconscientemente exteriorizada em forma de repulsa pelo espetáculo dos falsos palhaços gospel, que de forma canhestra, deturpa ou falseia as alegres noitadas em que me divertia com um palhaço de verdade, na minha tenra infância.


P.S:  No dia 27 de março comemora-se o dia do Circo. Aproveito o ensejo para deixar registrada aqui a minha homenagem aos grandes, sinceros e verdadeiros palhaços brasileiros que fizeram a alegria de muitos, como Carequinha, Arrelia e Piolin, de saudosa memória. Ao mesmo tempo em que deixo o meu repúdio aos falsos palhaços da prosperidade pentecostal que protagonizam diariamente um espetáculo de baixo nível, cobrando ingressos extorsivos pela pregação de mentiras e falsos milagres num suposto nome de Deus.






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